segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Caverna

Tem alguém aí? - Perguntam lá do lado de fora. Claro que tem, penso eu daqui dos fundos, onde me escondo do mundo para hibernar por um tempo. Estou aqui para dormir o sono do descanso, fugindo das obrigações e mesmices do cotidiano. Vim por conta própria. Não fui soterrado pela avalanche de hormônios e sensações que tanto atormentam os corações depressivos.

Não, não há uma enorme pedra fechando o recinto. Nem tão pouco um muro erguido do chão ao teto, com uma pequena entrada de ar e luz no topo. Não! Minha caverna é fechada à porta de madeira. E a chave está no meu bolso, atada a um chaveiro em forma de cruz. Também não estou preso aos grilhões platônicos. Posso mover-me livremente por todos os cômodos. E há Luz! Sim, Luz! Cavernas alegóricas só para os filósofos! A minha é diferente! Lar doce lar, que me abriga nos rigorosos invernos da alma.

Também não estou morto, atado a faixas, como pensam alguns. Estou vivo, pulsante! E o Amigo, desta e de todas as horas, que antes estava no lado de fora, entrou e sentou-se a minha escrivaninha. Juntos, estamos escrevendo alguns textos, tomando como base as emoções pretéritas que retiramos do baú que enfeita a sala. Matéria-prima para criações. Sim, pretéritas, pois as futuras ainda não existem! Não se faz lenha de árvores que ainda não nasceram! E o presente é agora, e por agora estamos tomando um cafezinho. Quem sabe, depois do café, não iremos escrever um texto sobre a prosa deste momento?

Ah, e quando o inverno passar e o Sol derreter a densa camada de neve, sairemos com cestos abarrotados das sementes que surgiram nos fundos da caverna, resultado das longas e frutíferas conversas que tivemos nesta fria e solitária temporada invernosa.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Espetáculo

Respeitável público! Está em cartaz, o maior Espetáculo da Terra! E não é de agora! Há muito está disponível em todos os teatros, cinemas, circos, praças, ruas e lares. Nos mais impenetráveis recônditos da alma humana. Nos mais iluminados palcos da arte contemporânea!

Há milhares e milhares de ingressos disponíveis nas bilheterias. Em quantidade suficiente para não deixar ninguém de fora. E são gratuitos! Pessoais e intransferíveis. Sim, são nominais! Se um amigo ou um familiar quiser, terá que vir buscar o seu respectivo. Convide-os! Além do Espetáculo, a entrada dá direito a um Banquete, com lugar ao lado do Protagonista. E não há filas, infelizmente! Ultimamente, as pessoas têm se afeiçoado a outras “artes”. Uma pena!

Há tantos atores! Há um Rei, que desce do seu Trono e faz-se igual aos seus súditos. Há uma Mãe, doce Mãe, que conduz todos os outros artistas aos braços do Soberano, seu Filho. Há muitos príncipes e princesas espalhados por todo o cenário, buscando um encontro pessoal com o Monarca. Há aqueles que não O buscam, pois se dão a outras paixões. Há também você e eu! Sim, podemos participar diretamente do Espetáculo! Diria até que a nossa participação é fundamental! Mas só se você quiser, claro. Ninguém é forçado a nada! Há ainda aqueles que querem atrapalhar o andamento da Peça. Antagonistas das Divinas Artes. Não vale a pena falar deles! Já possuem audiência demais!

E então, o que está esperando? Vamos? Há muitos lugares vagos na plateia. E não precisa levar muita coisa. Basta o seu coração. Deixe suas faltas, seus erros, sua vida velha. Fica tudo do lado de fora. Dinheiro, pra quê? Também fica para trás! A pipoca é de Graça! Isso mesmo, Graça! E se quer saber o horário da próxima sessão, pode ser agora, se você quiser!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Carroça

Fome, miséria, violência, doenças, catástrofes. Eis a carroça de desgraças que assola a humanidade e a reduz a pó! E desiludidos, cansados e perdidos, perguntam os homens, com o peito cheio de razão: Por que Deus não freia este carro?

Ah, tantas perguntas a se fazer! Mas a acusadora questão de sempre invade os pulmões tuberculosos e explode num rompante: “Por que, Senhor?”. Pergunta que, direta ou indiretamente, atribui a Deus uma culpa que não é dEle. Nós e o nosso encardido vício de buscar nos outros a culpa que, quase sempre, não é dos outros. É nossa!

Mas enfim, por que mesmo Deus não pára esta carroça? Tomo aqui a liberdade de responder tal questão com algumas outras, para não fugir da esperada reação de um homem, posto que também faço parte desta humanidade: Deus tomaria de volta um presente dado aos homens? Seria esta uma atitude digna dAquele que é só Amor, o mais Puro Amor?

Caros irmãos, Ele, nosso Divino Criador, deu a nós uma charrete, chamada Livre-Arbítrio, para que pudéssemos enchê-la com coisas boas. Mas, infelizmente, fazemos mau uso desta dádiva. Por amor a nós, despiu-Se de sua condição de Onipotente para nos presentear com o poder de agirmos livremente. Um poder que só um Pai pode dar a um Filho.

Portanto, não são cavalos divinos que puxam este carro. São cavalos terrenos! São homens que matam os seus de fome. São homens que disseminam a miséria entre os homens. São os homens que produzem as armas, as drogas e todo o tipo de lixo destruidor. São homens que concentram o poder e o conhecimento nas mãos de poucos e privam os demais dos avanços da Ciência e da Medicina. São os homens que disseminam os desentendimentos, as desavenças, as desilusões, as desgraças. O “des” não vem de Deus. A Graça sim, é Fruto de Suas Mãos. E não quero imaginar o quão triste Ele fica diante de tal postura nossa. Para que possa atingir um Ser Infinito, deve ser uma tristeza profunda!

Ah, Senhor, perdoai-nos! Ocupados com as humanas artes de acusar, questionar e acelerar, nos esquecemos das Divinas Artes de Assumir, Solucionar e Frear.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Rosa

Bendita a hora que tu foste embora, tenebrosa Rosa! Saiu com tua trouxa de vestidos vermelhos despetalados e tomou o primeiro cometa desgovernado que por nossa porta passou. Foi-se desgovernada, esvoaçante, desgovernar outras vidas que, desavisadas, encantaram-se com tua efêmera beleza. Ah, se conhecessem a Verdadeira Beleza!

Saiu com tanta pressa que nem sequer lembrou-se de trancar o cadeado. Deixou minha vida e meus pertences escancarados. Já pensou se o ladrão resolve visitar meu lar, desleixada Rosa? Há agora tantos ladrões por estes confins! Já pensou se roubam um dos meus vulcões?

E a pobre borboleta? Por que tu não te despediste dela, ó indiferente Rosa? A pobrezinha veio prosear contigo pela manhã, como faz de costume, e encontrou tua redoma vazia! Quase teve um passamento, a alada criatura. Nem tuas amizades tu valoriza, inimizada Rosa!

Ah, cruel vegetal, e se achas que, por ter se ido, deixou no meu peito um coração ferido, eu novamente te digo: Bendita a hora que tu foste embora! Pois agora irei reorganizar os sentimentos e sensações que estavam misturados nos caldeirões das tuas vontades. Vou reerguer o altar que estava no chão, utilizado para adubar o teu colchão, e colocar sobre ele a Verdadeira Razão do meu viver.

E se um dia eu te ver por aí, pretérita Rosa, te apresentarei Àquele que encontrei enquanto mergulhava nesta dolorida arte de transformar dor em Arte. Ele que me mostrou que não sou só um Pequeno. Sou um Príncipe, filho do Rei, filho do Pai!

Escada

Nesta
escada
que
desce
das
Alturas,
vem
a
Unção
que
brota
das
Divinas
Mãos,
até
chegar
ao
homem
que,
por
desleixo,
maldade
ou
excesso
de
preocupação,
deixa esta Suprema Graça espatifar-se no chão. E no chão permanece até que vem o menino, brincando de peão, recolhe os cacos, coloca no bolso e vai-se embora com a Divina Inspiração. Cresce, vira gente e torna-se escada para todos os cristãos.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Estação

Eis-me aqui, numa destas estações da Vida, aguardando, ansioso, a chegada do Trem da Felicidade. E com o meu fiel companheiro atado ao braço esquerdo, marco o tempo da espera. Relógio que exibe em fatias a ânsia do novo, fatiando também o meu coração já em pedaços.

Olho para o Nascente, na esperança de enxergar o mínimo sinal da fumaça branca que brota da chaminé da sonhada locomotiva, mas nada. Nada além de uma revoada de pássaros ao longe, migrando para o Sul, escapando do vento frio do inverno que se aproxima. Inverno que já me alcançou, fazendo cair minhas folhas, esfriando minha alma, encharcando minhas alegrias, afogando meus sonhos. Pelo aspecto das aves, diria que são garças. Ah, e quem dera fossem Graças e migrassem para o meu coração! As Graças que um dia pedi e que ainda devem estar no Alto de Sua Morada, aguardando a divina hora de Sua revoada, hora que desconheço e que não pode ser marcada pelos relógios humanos, pois não os obedece.

Falando em horas, há tantas aguardo. Nesta estação, onde estacionou o meu coração, parece que o tempo também estacionou. E estacionados estão os meus braços, cruzados sobre o meu peito. Estacionadas estão minhas pernas, cruzadas sobre o banco estacionado. E estacionado estou por completo, quando o cochilo avança sobre os meus olhos e estaciona em mim, arrebatando-me de minha consciência. Logo se torna sono, e sono profundo! Tão profundo que não escuto o apito do Trem que ecoa em badalos, anunciando, finalmente, a sua chegada.

E eis que chega, puxando o vagão repleto de lenha viva, utilizada para inflamar a fornalha das mais baixas autoestimas. Além deste, muitos outros vagões também são puxados, cheinhos, abarrotados de felicidades. Pedidas e não pedidas! E para à minha frente, apitando com estrondo! Não acordo. A cobradora, chamada Esperança, salta do trem e tenta, docemente, me acordar. Não acordo. Ela insiste, calma, doce, maternal. Não acordo. Adentra a locomotiva. O Maquinista, paciente, também salta do trem e me chama pelo nome. Não acordo. Dirige-se à cabine e soa um último e estrondoso apito. Não acordo. Parte então seguindo os trilhos, rumo a outras estações.

Enfim, acordo. Olho novamente para o Nascente, e nada. Olho para o Poente e vejo, longe, o que parecem ser traços de fumaça branca expelida por um trem. Mas não deve ser, penso eu. Se o Trem tivesse passado, eu o teria visto. Devem ser garças voando rumo ao Sul.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dor aguda não identificada

Que dor não identificada é esta que sinto, ó Deus meu? Dor que não escolhe membro e nem nenhum órgão humano concreto, talvez para escapar dos efeitos paliativos ou definitivos das medicações. Dor que desponta num repente, nascida talvez de um turbilhão de sentimentos e sensações não tão repentinas, mescladas no caldeirão secreto do inconsciente e liquidificadas nos movimentos constantes do liquidificador do consciente.

Será a louca Depressão, que ora foge do hospício dos transtornos, arrebentando a camisa de força da mente para vir atormentar-me com seus berros e gritos silenciosos? Ah, triste herança familiar! És tu, desvairada? Identifique-se! 

Será o prussiano soldado do Combate, armado com sua espada e seu escudo torpes, que ataca a alma e toda a matéria que a envolve? Aparta-te de mim, ó militante do partido da tristeza!

Será o Cansaço humano, que chega de braços dados com a sua esposa, a chamada Estafa? Ó infeliz casal minador das mirradas forças do homem! Não quero fazer parte de um triângulo desanimadoroso!

Será a união destas três mazelas, que se juntam para formar o terrível exército do esmorecimento e marcham desenfreadamente em busca de corações para devorar, mentes para embaçar e crenças para dissipar?

Independentemente de quem é ou de quem são, sei o que fazer! Que venham as mais diferentes causas de desalento, enfrentá-las-ei! Amarrá-las-ei nos braços da Unção e transformá-las-ei em texto. Com todas as palavras, vírgulas e pontos necessários! Quem sabe assim não faço essa dor sucumbir através dos corações e orações daqueles que lerão tais palavras, pela força da comunhão dos santos? Roguem por mim, santos corações, para que me desenlace deste laço que ora sinto, que ora transformo em palavras, que ora estão a ler.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Santa Casa

* A Casa Mãe da Comunidade Recado - conheça esta Vocação: http://comunidaderecado.com

Olha a casa, casa santa, onde Deus fez Sua morada - assim diziam as velhas cantigas dos dias de Reis de minha infância. E quem diria que um dia eu viria topar numa destas santas casas. Santa Casa das mil e uma misericórdias, que me acolheu quando eu atravessava um dos períodos mais complicados de minha vida. Quero louvar e agradecer, porque Você, Senhor, me trouxe até aqui!

Casa de um certo Francisco, de uma certa Teresa, baluartes da Vocação das Belas Artes. Casa também de uma certa Das Graças, que com o seu véu branco e manto azul, debaixo do sapotizeiro, acolhe todos aqueles que chegam pronunciando a famosa jaculatória: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós!”. Rogai por nós, ó Santa Mãe de Deus! Ela que também se encontra aos fundos, no seu cantinho, quietinha, acolhendo tantas preces e palavras que se dão em seu derredor, nos acompanhamentos, formações, no coro grave do Terço dos Homens, nos encontros dos grupos de oração. Ela que contempla, todos os dias, a Cruz do seu Filho posta no alto da torre branca visível de seu posto, fazendo referência ao dia da dolorosa Paixão de Nosso Senhor. Torre de onde ecoa, através de badalos, a voz dEle, chamado os fiéis ao seu compromisso, confirmando as divinas moções do Espírito.

Casa de um tal Jesus! Ah, esse tal Jesus, que rasga os véus de tantos corações empedernidos. Jesus que não se encontra apenas na Capela, escondido no Sacrário ou exposto no Ostensório. Encontra-se em toda a casa, nos oferecendo os pés de Sua Cruz, pra sermos lavados por seu Sangue Redentor. E quão bela é a imagem de Seu precioso Coração, que está sempre aberto, oferecendo o repouso a todos aqueles que estão cansados, sem lugar para descansar.

Casa de um pátio enorme, onde ocorrem as Celebrações Eucarísticas, onde ocorrem os momentos comunitários, os Seminários de Vida - porta de entrada para muitos corações desejosos de um encontro pessoal com o Anfitrião. Onde, enfim, podemos dizer a uma só voz: Elegemos-Te Senhor, como nossa riqueza, em Ti está o nosso coração. Nossa Herança, nossa Fortaleza, nossa Vida e Salvação. Bendito seja o Senhor por esta casa!

Casa de tantas salas, de tantos ministérios, de tantos grupos, de tantos projetos e obras. Divinas Obras! Casa de tantos filhos e filhas que lutam dia a dia buscando a santidade, em meio aos percalços do mundo. Pastores, intercessores, músicos, cantores, atores, atrizes, circenses, escritores, pintores, escultores, fotógrafos, artistas que ainda não encontraram sua arte, pessoas especialistas na difícil arte de viver. Frutos do Divino Artista, ministros do Louvor e da Alegria, consoladores do Sagrado Coração, unidos para anunciar a Glória do Cristo Ressuscitado e para sempre, sempre dar o Recado que vem dos Céus! Ó bendita casa! Santa casa! Casa Mãe, casa Pai, casa do Pai!

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Imagem

Acordei cedo. Ela também. Meus olhos, ainda pesados de sono, prendiam-me a cama. E ela, também presa, com os olhos também pesados, retinha-me. Levantei-me num salto, vencendo os seus braços. Banho, roupas, café da manhã e logo já estava pronto para mais um dia de trabalho, de lutas. E ela também.

Saímos juntos, como sempre. Ambos no carro, calados, ouvindo o mesmo som de todos os dias. Som do som, som do trânsito, som das pessoas na rua. Um breve momento de oração, antes da chegada ao trabalho. Uns seis quarteirões antes, pra ser mais preciso. Um Vinde Espírito Santo, um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Santo Anjo do Senhor. Rezamos juntos, mais como um compromisso do que como uma reza de fato. E de direito! Momento mecânico, muitas vezes. Raramente vem do coração. Estacionando, dizemos o "Oh Maria concebida sem pecado". Já fora do carro, vem o "Coração Divino de Jesus, providenciai!". Providenciai! E como enchemos o peito para pronunciar isso! Cheios de razão!

Dia difícil. Eu correndo de um lado para o outro. Ela, também. Esbarramos-nos em alguns momentos, mas nada de interações. Somente ações. Ligações, reclamações, discussões. Estresse. Entardece. Anoitece. Hora de ir embora. Encontramos-nos no carro. Nenhuma palavra. Apenas uma troca singela de olhares e um sorriso amarelo. Seguimos. Passando por uma capela, lembro que aquele era dia de Adoração. E qual não é? Reduzo a velocidade, procuro parar. Não, vamos para casa! - Clama ela quebrando o silêncio que imperava. Estamos cansados, exaustos, não temos tempo pra isso. Sou vencido, não reajo. Apenas obedeço a vontade que se sobrepõe a necessidade.

Chegamos ao lar. Banho, pijamas, jantar. A televisão grita, como se fosse a dona da casa. Cospe sobre nós todas as mazelas deste mundo. Levanto irritado. Desligo o eletro indomesticável com rapidez. Contra a vontade dela. Meu coração está inquieto, agitado. Decidido, resolvo quebrar o gelo entre nós. Ponho-me diante do espelho e inicio uma longa conversa, uma longa reflexão: Ah, Imagem cheia de vontades, cheia de quereres, cheia de si! - Assim comecei minha explanação. E após muitas lágrimas, soluços e véus rasgados, tomamos posse da Graça que há muito estava esquecida: Somos filhos do Alto! Ela, a minha Imagem refletida no espelho, e eu, pobre cristão, somos Imagem e Semelhança dEle, que estava de lado neste texto - e nas nossas vidas - até então. E Ele, ah, Ele! Sem Ele, não seríamos imagem, não seríamos semelhança, não seríamos espelho, não seríamos nada.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Aliança

Olhou-me nos olhos e disse sorrindo: Recebe esta Aliança, como prova do meu Amor! Dei as costas e lentamente me dirigi à porta da frente. Nem sequer ouvi o pranto que se desdobrou. Lá fora, a Liberdade aguardava-me montada num lindo cavalo branco. Num salto, montei, e após um alto grito de "Avante!", corremos desenfreadamente pelo mundo.

A vida foi passando, o cavalo foi cansando, definhando, atrofiando, mirrando, morrendo. A Dona Liberdade, antes a mais bela de todas as princesas, embriagou-se com os vinhos doces do tempo e tornou-se a mais insuportável de todas as megeras. Andava despenteada, usando vestidos encardidos. Banqueteava-se com antidepressivos, antiamigos, antifelicidades. Desfigurada, desequilibrada. E desequilibrada estava quando abriu a porta do barraco onde morávamos e saiu correndo em busca da manada de cavalos brancos que disse ter visto passar. Nunca mais voltou.

Fiquei sem chão. Saí pelo mundo, vago, vagando, divagando, devagar. Sem comer, sem beber, sem falar, sem amar. Sem nenhum verbo que pudesse me valer. Preso às cadeias deixadas pela Liberdade. Solto nesta terra de tristezas e crueldades. Vaguei até perder completamente as forças e desmaiar à sombra de uma antiga construção.

Acordei com um estrondoso badalo. Olhei para cima e vi uma cruz no alto daquele prédio. Reconheci o local. O cinzento cavalo da desilusão me trouxe ao mesmo lugar onde, naquele dia infeliz, montei no alazão da Liberdade. A porta estava aberta. E cansado, sofrido, desiludido, mas decidido, entrei. E Ele estava lá, de pé, na mesma posição que estava quando O deixei. Então rasguei o meu coração dizendo: Senhor, eis-me aqui, pra receber a Aliança que naquele dia recusei. Apaga as minhas faltas, enxuga as minhas lágrimas, acolhe as minhas lástimas. Olhou-me nos olhos e disse sorrindo: Recebe esta Aliança, como prova do meu Amor!